segunda-feira, 7 de junho de 2010

O lado oculto da sala de aula

Em sala de aula fiz uma atividade cujo objetivo foi o de conhecer, a partir da autobiografia, os outros universos pelos quais habitam meus alunos, e, obviamente, aproximar-me deles.
Fui objetiva ao elaborar o enunciado da questão: “Produza um texto no qual você narre sua história de vida. Lembrem-se: esse gênero textual (autobiografia) exige o uso da norma padrão.” Entreguei-lhes as folhas de redação, e revisei a estrutura do texto para que eles pudessem refrescar a memória.
Tempos depois, um silêncio absoluto passou a reger os resmungos do ar condicionado. Cada um que voltasse os olhos para dentro de si com intuito de resgatar, no seu íntimo, seus momentos de vida. De repente, como diria o velho e bom Machado de Assis, a pena da galhofa ou da tristeza começara a agir. Borracha vai-e-vem, pinceladas de corretivo para cá, para lá, expressões faciais questionadoras de si mesmas e uns ruídos de lápis grafite que, ora dançava um miudinho, ora dançava um tango.
Primeira redação concluída. Olhei-a, li, reli, retirei as prolixidades, ambiguidades, erros ortográficos, etc.
Quando um primeiro aluno entrega o exercício, parece que os outros não querem “perder a corrida”, pois quanto mais rápido, mais eficiente parece ser a caneta! Próxima redação: mesma rotina; mais outra, idem... enfim. Fui tomar um cafezinho para degustar cada vida exposta no papel. Retornei ao pacote de redações, e sorteei mais uma para minha avaliação.Fitei-a. Estava escrito:

“ Meu nome é B. , tenho10 anos. Sou uma pessoa não muito feliz, pois algo muito forte marcou minha vida. Hoje, moro com minha tia, graças a ela, posso estudar nesta escola. Cuido dos meus primos e dos meus irmãos, às vezes, estudo quando tem tarefa para fazer.
Mas, o que eu queria dizer aqui nessa redação é que eu não tenho mãe, e sou triste por isso. Quando eu era menor, vi meu pai assassinando minha mãe, porque ela não queria mais ficar com ele, vi muitas brigas dos dois e a gente chorava muito. Foi difícil para mim, até hoje penso nela (...). Hoje moro com minha tia e sou feliz por ela ter nos acolhido. (...) Penso que se minha mãe tivesse viva eu seria a filha que mais ama a mãe no mundo (...).

Aquilo soou como um desafino para as batidas do meu coração. Fiquei com um gosto amargo na boca e algumas lágrimas descontroladas surgiram. Disfarcei. Olhei para a autora do texto e percebi que o brilho de seus olhos eram duvidosos de fato.
A ética profissional, a didática, as atividades formais, tudo o que aprendi foi pelo ralo do banheiro, e percebi que nessa situação era preciso um ser mais humano do que uma professorinha que detecta erros gramaticais. Não havia erros ortográficos naquela redação que eu pudesse enxergar, nem tão pouco, pleonasmo, eco, queismo, cacofonia. A única incoerência que percebi foi a maldade daquele pai.
O meu questionamento é:
Até que ponto os currículos presentes nos cursos de graduação compreendem esses problemas? Quanta fragilidade ainda temos para enfrentar situações limite!
Se existem fórmulas para o tecnicismo, hão de existir soluções para o intersubjetivo. A formação técnica pressupõe também a subjetividade. Quando foi que nós pagamos alguma disciplina chamada “educação e alteridade I e II”, “educação emocional I e II ”, “ autogestão I e II”, “ epistemologia do outro e do eu I, II, III e IV” ? Aprendemos “Política nacional da educação básica”,“ Educação e gestão”, “ Filosofia I e II” “ Epistemologia da educação”, etc. Esses conteúdos são importantes para nos conferir status de doutores, mestres, nos proporcionam bens materiais, cartões de crédito, uma profissão, viagens, criticidade, saberes formais, técnicos, enfim.
Por qual motivo nunca aprendemos no primário, hoje educação infantil, a matemática da relação humana, ou história do amor, gramática da boa vontade, geografia do servir? Já que isso é tão inerente ao ser humano?!
As leis educacionais estão muito mais preocupadas com o contexto histórico-social do aluno, com a estrutura, currículos, gestões, evasão escolar, entretanto, nenhum parágrafo voltado para garantir os reparos emocionais que os nossos alunos vivem. Precisamos rever essas leis para que os currículos dos cursos superiores construam práticas para nos ajudar a resolver essas pluralidades.
Finalmente, corrigi as redações, chamei a menina que produzira o texto e pedi sua autorização para ler sua vida em voz alta. Ela aceitou, então pedi atenção dos alunos, disfarcei novamente lendo uma ou outra redação e cheguei “àquela”. A turma silenciou ouvindo atentamente. Após o término da leitura, comovidos, solidarizaram-se com a menina e abraçaram-na chorando, dizendo que ali, em sala de aula, tinha uma família com a qual ela podia contar para sempre. E eu falei: gostaria de ser sua mãe para acabar com essa tristeza do seu rosto, porém como não posso, aqui existe uma professora-amiga.
Eis o lado oculto das salas de aula.

Um comentário:

  1. depois de ler o relato de B. só me resta silêncio e dor como fosse minha e, de alguma forma, é.

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